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Gente da casa da gente
12.01.2012
"Gratidão é a memória do coração". Escolhi esta frase para abrir a crônica em que recordo pessoas às quais associo bondade e amizade, muito além de um simples contrato de trabalho doméstico. Apesar das mudanças, ainda persistem certos preconceitos quanto ao emprego em residências, seja para funções de cozinhar, arrumar, seja para outras tarefas. O avanço das leis sociais não contemplou por inteiro esse grupo laboral. Muitas dessas empregadas sentem-se inferiorizadas e, infelizmente, muitos patrões/patroas não conseguem ver esse trabalho com a mesma dignidade como qualquer outro. Por ser gente da casa da gente, não é rara a formação de laços afetivos, quando a empregada doméstica - ou o empregado - passa longo tempo com a família. Na minha lembrança remota e recente, evoco alguns desses nomes, porquanto foram importantes para mim e/ou para pessoas do meu bem-querer.
Do tempo de criança, guardo a lembrança de Corina, face risonha, pele negra retinta, de Hilda, olhos grandes e meio gasguita, e de Lúcia. Figura i-nesquecível para os seis filhos do casal Diógenes e Eunice, em Nova Cruz, Lúcia era alegre, bondosa - enérgica quando precisava ser - e sabia contar estórias. Tinha a total confiança dos meus pais para tomar conta da família, até mesmo durante as frequentes viagens dos dois para João Pessoa ou para Recife, pelo trem da Great Western Railway - um avanço nos meios de transporte da época, levados à extinção pela curta visão de governos; uma pena. Dos anos de vida adolescente na casa dos meus pais, ficou a lembrança de Severina. Muito simples e humilde, era ela quem abria a porta para "os meninos" entrarem em casa, quando eles chegavam tarde da noite. Cuidou bem do meu pai, principalmente nos seus últimos anos de vida, e sabia fazer um café do jeito que ele gostava. Ainda sinto o cheiro daquele café coado no pano, a invadir toda a casa, nas primeiras horas das manhãs nova-cruzenses.
Agora, comento algumas passagens vividas em minha própria casa, por pessoas jamais esquecidas. Cabelos e olhos claros, tinha o apelido de Moça, apesar de não combinar com seu apego ao sexo oposto. Veio da roça e se espantou ao ver a luz elétrica, mas, sem sobrosso, aprendeu a cuidar das crianças, pois mostrou logo seu pendor maternal. Também era rápida no tocante a namoros, e a gravidez foi o caminho natural. Certa noite, minha mulher acordou ouvindo gemidos. Corremos ao quarto de Moça e a criança já estava nascendo. Fiz o parto ali mesmo, e, de repente, o esplendor da vida revelou-se no choro de uma saudável menina.
Não dá para comentar sobre tantas pessoas que nos ajudaram nas tarefas de casa. De um modo geral, ficaram por tempo longo, a exemplo de Marluce que passou 9 anos, ou Fatinha - 7 anos. A cozinheira Fatinha fazia vestidos para Beth, a cachorrinha vira-lata, sua paixão, que comia a melhor refeição da casa, quase sempre com recheio de queijo e presunto. Somos gratos a todas essas pessoas, mas dois nomes são especiais: Neuza e Paulo. Neuzinha, como a tratamos carinhosamente, lavou e passou nossas roupas durante quase 40 anos, pois aposentou-se mas quis continuar no trabalho. Seguiu de perto a trilha familiar: os tempos das crianças de berço, dos meninos e das meninas, dos rapazes e das moças, dos adultos, dos casamentos, e a fase do "ninho vazio". Todos querem-lhe um bem enorme. Paulo trabalhou conosco por mais de 20 anos. Era o caseiro/jardineiro e, depois de aposentado, também preferiu não aderir ao ócio. Testemunha de muitas transformações e de eventos marcantes da família, sua honestidade embasou a total confiança de que desfruta. Em face de doença, há pouco tempo, teve de parar, mas sua imagem compõe o painel da nossa grande gratidão por todos aqueles que foram úteis e bons para nós e para nossos entes queridos.
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