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Lembranças do Médico
31.07.2008
Em julho de 1966, cheguei a Santa Cruz – RN, a fim de trabalhar no Programa CRUTAC, recém-criado pela UFRN. Além do fascínio de integrar uma equipe multiprofissional, em projeto novo que levava a Universidade para o interior, trazia a alma cheia de esperança de poder praticar e viver a medicina de forma integral. Sentia-me seguro, pois o curso médico concluído no ano anterior fora feito com total dedicação aos estudos. Além disso, ótimos professores souberam dar ênfase à teoria ao lado da prática, contando com grande estrutura hospitalar para um número pequeno de alunos. Os três médicos contratados para o início do Programa tinham de estar aptos para atuarem em Clínica Médica, em Pediatria e em Ginecologia-Obstetrícia. Embora cada um fosse mais voltado para uma área, todos estavam prontos para o desafio do atendimento geral. Os colegas médicos Evanuel Elpídio e Bernardino Pereira formavam comigo o grupo pioneiro do Hospital-Maternidade Ana Bezerra, nos primeiros tempos do CRUTAC.
Chequei dirigindo um fusca já muito rodado e comprado com ajuda do meu pai, que não quis depois receber o pagamento do empréstimo. Solteiro, fui morar dentro do Hospital, em um pequeno quarto, sem forro, que ficava perto do Serviço de Urgência. Mesmo sem estar de plantão, o qual se tirava a cada três dias, eram freqüentes as noites mal-dormidas, pelos clamores, às vezes dramáticos, vindos do Pronto Socorro. Não raro, levantava-me para ir ajudar no alívio de dores e sofrimentos. Pouco a pouco, o Hospital foi sendo reorganizado, pois estava inativo há anos. O pessoal de apoio e de Enfermagem recebeu treinamento e, sem delongas, tudo ficou em ordem. Havia um entusiasmo enorme em todas as pessoas, uma verdadeira mística que Dr. Onofre Lopes era capaz de transmitir. Esse entusiasmo e essa alegria não se limitavam aos que trabalhavam na Universidade, mas se estendiam aos habitantes da região do Trairi. Às pessoas mais simples tive de explicar, por diversas vezes, que não se tratava de busca de votos, aquele projeto não era eleitoreiro, que o Dr. Onofre Lopes não era candidato a nada.
Os três primeiros médicos do CRUTAC tiveram também de aprender e fazer anestesia geral, a fim de ativar o Centro Cirúrgico. Lembro que na primeira operação Cesariana realizada, os três passaram grande sufoco, estresse mesmo, quando ocorreu grave sangramento. Ao final, todos ficaram bem, a mãe, a criança e os médicos. O que seria deles, os médicos, se a primeira cirurgia não tivesse sido um sucesso? Além dos serviços de saúde prestados no Hospital de Santa Cruz, uma equipe, com um dentista, um bioquímico, um médico e alguns estudantes, deslocava-se, a cada dia, para uma cidade próxima, no intuito de fazer atendimento ambulatorial. Certo dia de chuva forte, uma dessas equipes se dirigiu para Lajes Pintadas. No regresso para Santa Cruz, no final da tarde, um riacho muito cheio impediu a passagem da Kombi. O jeito foi voltar para dormir em Lajes Pintadas. No entanto, frustrou-se essa tentativa, pois o rio que passa perto da cidade já estava com água de barreira a barreira. Aí, restou à equipe procurar um abrigo em pequena casa de taipa, de difícil acesso. Um casal de pessoas idosas recebeu o grupo de forma muito gentil, apesar do susto inicial. Todos se acomodaram pelo chão ou sentados em bancos e debruçados sobre uma mesa rústica. Os respingos da chuva que caía, o frio e o zumbido dos mosquitos só paravam nos momentos dos raros cochilos. Os primeiros raios de luz da manhã chegaram juntos com o cheiro do café oferecido pelos anfitriões com um afável sorriso. Não há como esquecer aquela noite, não somente pelo inusitado mas também pelo contraste da pequena casa com o grande gesto do bondoso e humilde casal.
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