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Com uma escrita magistral, o médico e escritor Pedro Nava (1903-1984) é autor da melhor obra memorialística do país. Falta-me a leitura de dois dos seus livros nessa área, no total de seis. Na obra Chão de Ferro, estão as reminiscências do jovem Nava, quando aluno interno do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, no qual ficou de 1916 a 1920. Reporto-me ao ano de 1918 – Nava tinha 15 anos –, com enfoque principal para a gripe Espanhola, a pandemia de influenza que varreu o planeta e deixou um rastro com cerca de 50 milhões de vítimas. Quase 60 anos depois, o médico Pedro Nava faz um relato pungente das lembranças que ele guardou daqueles dias terríveis vividos ao lado de parentes, na casa dos quais morava em suas saídas de folga do internato. Nava refere-se a setembro como o mês em que a doença chegou ao Rio. Porém, ele só sentiu de perto a gravidade da situação em meados de outubro, numa segunda-feira, conforme suas palavras: “Voltando ao colégio, encontrei apenas onze alunos do nosso terceiro ano de quarenta e seis. Trinta e cinco colegas tinham caído gripados de sábado para o primeiro dia da semana subsequente.” Cerca de duas horas depois, o colégio informou que fechava as portas por tempo indeterminado.
Naquele ano, nas folgas do colégio, Pedro da Silva Nava ficava na casa dos tios Antônio Ennes de Souza e Eugênia, na rua Major Ávila, 16, Engenho Velho. Irmão de criação do avô de Pedro Nava, Ennes de Souza (1848-1920), era culto e mantinha amizades com proeminentes figuras cariocas da época. Vejam o que Pedro Nava diz do seu parente Ennes de Souza: “Se conheci alguém próximo da santidade aqui nesse baixo mundo, este foi Antônio Ennes de Souza – o homem menos imperfeito que já vi”. Na casa de Ennes e Eugênia, casal sem prole, moravam oito parentes e afins, inclusive o menino Gabriel, criado como filho. No dia em que o jovem Nava voltou logo para casa, pois o colégio Pedro II fechara as portas, um outro choque, porquanto quando saíra pela manhã estava tudo normal com a família, e, ao retornar, à tarde, três pessoas tinham os sintomas da gripe, mas na forma leve. Em resumo, todos os que moravam na rua Major Ávila, 16, caíram doentes da gripe de 1918, exceto os donos da casa.
Pedro Nava teve a forma gastrintestinal da doença, com profusa diarreia e vômitos, passava a maior parte do tempo sentado nos maiores penicos da casa, e o odor fétido era constante. Ele sobreviveu, mas a prima Nair, que ocupava o quarto ao lado do dele, não teve o mesmo destino, e foi ao óbito. Era uma moça bonita, risonha, noiva e muito querida por todos de casa. São cruciantes as cenas descritas da morte e do funeral de Nair, fato que retrata muitos outros dramas iguais vividos em quase todas as famílias do Rio de 1918.
É atroz e horrível a descrição da gripe Espanhola no Rio, na visão de Pedro Nava, testemunha ocular do flagelo. Eis somente um pequeno trecho, para se ter uma ideia do clamor geral: “Quando ataúde havia, não tinha quem os transportasse, e eles iam para o cemitério a mão, de burro-sem-rabo, arrastados, ou atravessados nos táxis. No fim, os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros, diziam que às vezes vivos, junto com os mortos. (...) Um dia, o acúmulo de insepultos foi tal que queimaram-nos aos montões no fundo do cemitério.”
Daladier Pessoa Cunha Lima
Reitor do UNI-RN
Publicado na edição desta quinta-feira, 11/06/2020, do jornal Tribuna do Norte
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