Sabina* - Centro Universitário do Rio Grande do Norte - UNI-RN
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Sabina*
24.04.2008

Já se ouviam as vozes da liberdade, mas ali estava a senzala, com os escravos ainda presos aos grilhões infames. Os donos não chegavam a ser cruéis, porém as faltas tidas como mais graves eram punidas com açoites. A casa-grande ficava na parte mais alta da fazenda. Do terraço da frente, viam-se as lonjuras da região, as plantações, a mancha verde de mata e o rio perene. O patriarca era homem austero e cordial, sempre ladeado pela senhora dona, bem mais jovem, afável e temente a Deus. O casal tinha um filho rapaz e uma sinhá moça, dois anos mais nova que o irmão. As crianças negras recém-nascidas iam para o batismo, na capela da fazenda, durante as visitas periódicas de um padre amigo. Havia os escravos do eito, voltados para o trabalho agrícola, e os escravos do labor doméstico, os quais gozavam de certas regalias. Uma dessas negras de dentro de casa morreu de parto na primeira gravidez, sem nunca ter revelado quem era o pai da criança. Pensava-se ser um branco, comprador de café, que vinha com freqüência à fazenda para exercer o seu ofício... A menina nasceu sadia e, na pia batismal, recebeu o nome de Sabina. A criancinha orfã cresceu e viveu na casa-grande, sempre querida por todos, tornando-se amiga confidente da sinhá moça, pois tinham quase a mesma idade. “Era cria de casa. A sinhá moça/ Que com ela brincou sendo menina/ Sobre todas amava esta Sabina/ Com esse ingênuo e puro amor da roça”. Sabina, aos dezoito anos, mostrava-se uma bela mulher, corpo esbelto, riso fácil e andar provocante. Era feliz, amável e sensual. Enfrentou muitos convites para os prazeres da cama, mas a todos resistiu, inclusive os feitos sob pressão pelo capataz da fazenda. Sabina, no entanto, sentia o calor da atração por Otávio, logo por quem, o bonito senhor moço. Ele estava nos devaneios da mucama, na sua mente e nos seus ardentes desejos. Ela sofria por isso e procurava dissipar de todo jeito essa loucura. Otávio cursava a Faculdade de Direito, mas vinha para a fazenda durante as férias. Rapaz formoso e rico, havia uma plêiade de moças que por ele suspiravam. “Vinte anos tinha Otávio, e/ A beleza de um ar de corte,/ E o gesto nobre, e sedutor o aspecto/(...) Nas suspiradas férias/ Volvia ao lar paterno; ali no dorso/ De brioso corcel corria os campos”. Em dia de sol forte e de muito calor, Sabina foi se banhar no rio, em busca de refúgio na limpidez das águas e na solidão das matas. Antes de mergulhar, despiu-se por completo e seu corpo escultural mostrou-se à natureza. Em sua companhia, somente os alegres pássaros do lugar. Na mesma manhã de estio, Otávio, “Chapéu de palha e arma ao ombro, lá foi terreiro fora, passarinhar no mato”. Ao chegar perto do rio, no meio de folhagem densa, ele viu Sabina, como nunca tinha visto antes. Aproximou-se e, a transbordar de desejos, envolveu a mucama com juras e afagos. E Sabina se entregou, no “Prazer, prazer misterioso e vivo/ De cativa que amou silenciosa”. O moço retornou à Academia e Sabina chorou de saudade, mas também sorriu, “Num pálido sorriso de mãe”. Ela sofreu os apupos dos terreiros, mas a todos perdoou. Em vão, esperou outra vinda do homem com quem fez chegar ao seu ventre a magia da vida. Otávio voltou, mas para casar com linda jovem de quinze anos. O casório se fez com grande festa na fazenda. Rápida, Sabina fugiu dos ruídos daquela noite, e decidiu se afogar no rio. “Morrerá comigo/ O fruto do meu seio; a luz da terra/ Seus olhos não verão; nem ar da vida/ Há de aspirar”. Porém, o amor materno, a maior força do mundo, se sobrepôs a todas as tristezas. “Ia cair nas águas;/ Quando súbito horror lhe toma o corpo;/ Gelado o sangue e trêmula recua;/ Vacila e tomba sobre a relva. A morte/ Em vão a chama e lhe fascina a vista;/ Vence o instinto de mãe”. * Excerto do poema “Sabina”, de Machado de Assis.

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