Tempo bom, dos pés descalços - Centro Universitário do Rio Grande do Norte - UNI-RN
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Tempo bom, dos pés descalços
18.01.2008

Andar e correr descalço pelos caminhos e ruas da cidade era o habitual. Usufruir o tempo livre e a vida boa dos meninos, nos idos da década de quarenta em Nova Cruz, tinha de ser com os pés no chão, para jogar bola e bem aproveitar o elenco de brincadeiras próprias da época e do lugar. Então, como não sofrer com as topadas? De vez em quando, era um chute na pedra e lá estava um dedo do pé sangrando ou uma unha arrancada. Em casa, havia uma gaveta com água oxigenada, gaze e mercurocromo, usados para limpeza e cuidados nas lesões. Minha mãe fazia ou mandava fazer os curativos e dizia para se andar calçado. Às vezes, ouviam-se os carões, pelo pouco caso dos filhos aos seus conselhos. Dor grande mesmo era quando o trauma ocorria em lugar já antes afetado. Quem não passou por uma situação dessas? O dedo vizinho ao dedão do meu pé direito era o preferido das topadas e sempre estava mais ou menos doente. Pois foi esse dedo que sofreu uma infecção grande, a unha quase solta em área muito inchada, dor sem parar dia e noite. Ficou difícil até para andar e meu pai me levou para o médico da cidade que retirou a unha, fez curativo e disse da possível amputação como melhor remédio. Fui recompensado com a volta para casa em um carro Ford 29, o único de aluguel em toda a região. Poucos dias depois, estava no trem bacurau, assim chamado porque saía de Nova Cruz às três horas e trinta minutos da madrugada, com destino a João Pessoa. Fui em busca de atenção médica na capital da Paraíba. Fiz muitas vezes esse percurso, pois a ligação familiar e de negócios do meu pai era com o estado vizinho. A viagem no trem era sempre uma alegria muito grande, uma diversão. As paisagens novas, as paradas nas estações, os vendedores de rolete de cana, sanduíche de galinha torrada, tapioca de coco, cocadas de leite, e a água resfriada na quartinha ou moringa, servida em um único copo de alumínio. Passava-se por Caiçara, Duas Estradas, Guarabira, Sapé, Itabaiana, Mari e Santa Rita, além de outras cidades e vilas. No entanto, a viagem desse dia não foi capaz de reduzir as agruras causadas pela infecção. O ponto de apoio em João Pessoa era a casa dos avós paternos: avenida Tabajaras, 863. Não há como esquecer os detalhes dessa casa e os bonitos ipês de uma ponta a outra da avenida, muitas vezes cobertos de flores amarelas. No mesmo dia da chegada, meus pais me levaram ao Dr. João Medeiros, pediatra famoso na cidade. Lembro-me que implorei a cirurgia, a fim de me livrar logo do sofrimento. O bondoso médico optou, primeiro, pelo tratamento clínico, com sessões de uso de vapor, remoção de tecidos já mortos e curativos diários. Foram três meses, com melhora lenta, numa época sem antibióticos. O pediatra brincava e me chamava Le Peletier, uma marca de manteiga francesa – ou “manteiga derretida” – pois não conseguia conter o choro no momento dos curativos. Ficou a cicatriz, mas meu dedo do pé foi salvo e tive de pagar promessa feita por minha tia Joaninha. Com ela, fui levar um dedo em cera para uma igreja de João Pessoa, a fim de agradecer à Santa cujo nome não lembro. Voltei feliz para Nova Cruz. Só não gostei de ter de usar sapatos o dia todo, durante meses, quando também parei de jogar futebol, com o intuito de não machucar o dedo ainda frágil que precisava de proteção. Mesmo com os chutes nas pedras e os traumas, tempo bom foi aquele, dos pés descalços. Agora, é lembrar Santo Agostinho: “O tempo não passa de uma distensão. Mas uma distensão do que, não sei com exatidão, provavelmente da própria alma”.

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